Negros nos parlamentos ou hipocrisia coletiva? Por Douglas Belchior

O Brasil precisa eleger lideranças negras do movimento negro. Pessoas que tenham compromisso com as propostas defendidas pelo movimento e que sejam representações diretas de quem é atingido pelo racismo. Não precisamos e não queremos mais ser representados por quem não vive os problemas que vivemos

No Diplomatique Brasil

Os parlamentos brasileiros, sejam eles em nível federal, estadual ou municipal, são protagonistas do processo político nacional. A Câmara Federal, por exemplo, instituiu o chamado orçamento secreto, maior dos escárnios. Afinal, o que deveria ser mais público numa república democrática do que o orçamento do Estado? O Brasil de Bolsonaro e Lira formalizou o que, em grande parte da história, fora feito com um tanto de discrição e zelo. O uso do dinheiro público para os interesses privados agora é regra formal e se explica pelo nome.

Justiça seja feita, os retrocessos propostos pelo governo de Bolsonaro não foram piores graças a uma oposição valente, a parlamentares que, embora em minoria, honram a tradição da boa política brasileira. Ainda assim, foram inevitáveis muitos dos desmontes de políticas públicas, a entrega do patrimônio nacional, a destruição do meio ambiente e das florestas, o estímulo à violência contra povos indígenas, quilombolas, Lgbtqia+, mulheres, negros e defensores de direitos humanos, através da conduta de uma gangue que atende pelo nome de Centrão e de um criminoso no palácio do planalto.

Nunca é demais lembrar que foi um Congresso tomado pelo fisiologismo que deu origem ao pior dos capítulos de nossa história, quando promoveu a injusta e imoral cassação da ex-presidenta Dilma Rousseff, sem crime que valesse tal punição. Daí por diante, asfaltou o caminho que nos levou à eleição de um inapto à Presidência da República.

Nos estados, via de regra, as assembleias legislativas são antros dos interesses das oligarquias. Câmaras municipais também são terras arrasadas. Atuam ao prazer dos interesses caseiros e, sem limites, promovem cassadas e perseguições racistas como a que vemos acontecer contra Renato Freitas, vereador negro, recém-cassado pelos pares brancos e corruptos da Câmara Municipal de Curitiba. E urge ainda a resposta para a pergunta: quem mandou matar a vereadora carioca Marielle Franco?

Nunca foi tão importante prestar a atenção também nas eleições proporcionais. Não há governo progressista e comprometido com Direitos Humanos que possa alcançar sucesso ante uma maioria de parlamentares sem compromissos mínimos com a pactuação civilizatória alicerçada na não violência e na garantia de todas as vidas.

É nos espaços dos parlamentos que se transformam em leis os direitos dos cidadãos. Mas há direitos que só são reconhecidos quando quem não os têm ocupam esse espaço. O racismo, por exemplo, era considerado uma simples contravenção. E foi só na constituinte de 1988 que o deputado federal Carlos Alberto Caó de Oliveira, ao lado de Benedita da Silva, Paulo Paim e Edmilson Valentim, cravou o trecho que torna o racismo inafiançável e imprescritível. Depois, ele apresentou o projeto de lei que regulamentou o que havia sido disposto na Constituição. Caó era jornalista, advogado e militante do movimento negro – e foi essa militância que transformou racismo em crime no Brasil, em 1989, com a homologação da Lei 7.716.

O movimento negro se dedicou à denúncia do racismo nesses anos e conseguiu torná-lo um tema prioritário na pauta da sociedade. Os meios de comunicação, o setor privado, artistas, intelectuais, clubes de futebol, partidos políticos e uma diversidade de instituições foram obrigados a se posicionar. A opinião pública, hoje, reconhece e condena o racismo em seus discursos.

O Brasil vive a explosão da fome, com mais de 33 milhões de famintos. Vê o número de pessoas morando nas ruas, sem-teto e sem-terra aumentarem. Sofre com a dor das famílias que perdem jovens e adultos negros mortos pelas polícias, seja em sua atuação cotidiana, seja em chacinas cada vez mais comuns. Percebe os processos que conduzem à exclusão do ambiente escolar milhares de crianças e adolescentes, sobretudo negros, bem como a destruição das políticas de acesso e permanência no ensino superior. E os efeitos do desemprego e da miséria crescente que, assim como em todos os temas anteriores, afetam desproporcionalmente a população negra. Ora, cansamos de esperar que olhem por nós. Seremos nós, ocupando espaços de poder, que reverteremos as mazelas do racismo brasileiro.

Dados do site do Tribunal Superior Eleitoral mostram que apenas 24% dos 513 deputados federais eleitos em 2018 são negros. No Senado, esse percentual é ainda menor: somente 16% das 81 cadeiras são ocupadas por pessoas negras. Se considerarmos os parlamentares que realmente se dedicam à agenda antirracista, esse número cai substancialmente.

O Brasil precisa eleger lideranças negras do movimento negro. Pessoas que tenham compromisso com as propostas defendidas pelo movimento e que sejam representações diretas de quem é atingido pelo racismo. Não precisamos e não queremos mais ser representados por quem não vive os problemas que vivemos.

É por isso que a Coalizão Negra Por Direitos lançou a campanha Quilombo nos Parlamentos, uma iniciativa suprapartidária que apresenta ao país mais de uma centena de pré-candidaturas de lideranças negras ligadas ao movimento negro em todo o Brasil, em diversos estados, com a missão de ocupar assembleias legislativas e o Congresso Nacional.

Graças ao trabalho incansável do movimento negro, o Brasil, hoje, discute racismo com a gravidade e importância que tem. Todas as instituições reconhecem o racismo como um problema a ser resolvido, reparado. E o antirracismo se transformou em selo de compromisso social, pois cobramos de toda a sociedade que pratiquem o antirracismo sobre o qual tanto falam. Fortaleçam candidaturas negras. Promovam e estimulem o voto antirracista através da plataforma votoantirracista.com.br. Afinal, no auge da celebração do sufrágio universal, é bom lembrar que, enquanto houver racismo, não haverá democracia.

Douglas Belchior,  professor de História, cofundador da Uneafro Brasil e membro da Coalizão Negra Por Direitos

Lançamento da iniciativa Quilombo nos Parlamentos, da Coalização Negra Por Direitos, em São Paulo. Foto: Elineudo Meira/ Coalização Negra por Direitos

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